Prof. Doutor Rui Miguelote em entrevista à +Fertilidade

O Prof. Doutor Rui Miguelote, médico da equipa CETI, deu uma entrevista à Revista +Fertilidade, da Associação Portuguesa de Fertilidade, sobre a importância do encaminhamento atempado dos casais inférteis para a consulta de especialidade.

Não deixe de ler esta entrevista de grande relevância que partilhamos aqui consigo.

Conhecimentos dos médicos de Medicina Geral sobre infertilidade “têm aumentado bastante”

Os médicos das unidades de saúde familiar (USF) são procurados para determinar se alguns sintomas podem denunciar um problema passível de tratamento com medicação, observação nas urgências ou acompanhamento na especialidade nos hospitais.

A +Fertilidade procurou saber se em casos de possível infertilidade, estes clínicos encaminham atempadamente os pacientes para as áreas da Ginecologia, Urologia ou Procriação Medicamente Assistida (PMA), dado que alguns casais inférteis consideraram à APFertilidade que não receberam o devido acompanhamento nas USF e os seus casos chegaram à especialidade demasiado tarde.

Rui Miguelote, médico no Centro de PMA do Hospital Senhora da Oliveira – Guimarães, professor na Escola de Medicina da Universidade do Minho, e coordenador do curso de pós-graduação Avaliação e Orientação do Casal Infértil, lecionado na mesma universidade, dirigido a internos e especialistas de Ginecologia e Obstetrícia e de Medicina Geral e Familiar (MGF), admite que pode existir uma orientação tardia por parte destes médicos para a especialidade, mas que o adiamento da procura de ajuda médica pelos casais, por questões de literacia, por exemplo, é um fator importante a considerar.

+Fertilidade: Ao longo dos anos, vários casais têm partilhado com a APFertilidade que procuraram orientação do médico de família para conseguir uma gravidez, depois de vários meses ou anos de tentativas, e que o seu caso ficou parado, sem procura de possíveis explicações através de exames ou encaminhamento para a especialidade. Há ainda muito desconhecimento por parte dos profissionais das USF sobre os passos a dar em situações destas?

Rui Miguelote: O atraso no início do estudo e orientação de um casal infértil tem ocorrido geralmente por dois fatores. O primeiro está relacionado com o fato de alguns casais não saberem ou não quererem reconhecer a existência de um problema e adiarem a procura de ajuda.

Isto acontece por, para além de alguns fatores psicológicos, os casais desconhecerem os sinais e sintomas que podem indicar a existência de uma condição que deve merecer uma orientação imediata.

Uma mulher que pare o contracetivo oral e que fique sem menstruar mais de três meses ou que tem menstruações muito irregulares, ou que tem muitas dores na menstruação ou na relação sexual em algumas posições deveria procurar ajuda médica logo que desejasse engravidar.

Também é importante passar a mensagem que a idade da mulher, a partir dos 35 anos, é por si só um fator de subfertilidade e, que por isso, acima desta idade, não devem esperar mais de seis meses para procurarem ajuda. Ou seja, há ainda alguma falta de literacia para saúde nestas questões da fertilidade.

A segunda causa acontece, realmente, pela não identificação por parte de alguns médicos de medicina geral e familiar ou especialistas de ginecologia dos casos que devem merecer precocemente uma avaliação e uma orientação mais diferenciada.

Condições como a endometriose são ainda algumas vezes subdiagnosticadas ou subvalorizadas, o fator masculino ainda é muitas vezes só avaliado numa fase mais avançada do estudo do casal, quando deveria ser avaliado logo no início e a orientação de algumas situações de anovulação, nomeadamente situações de amenorreia hipotalâmica funcional, são orientadas de forma desadequada nomeadamente assumindo tratar-se de casos de Síndrome do Ovário Poliquístico.

Felizmente, para ambas as causas, tem se verificado melhorias significativas, mas ainda se pode fazer mais.

+Fertilidade: Deveriam as USF passar a integrar a possibilidade de avaliar a fertilidade, informando os utentes sobre a existência de formas de se averiguar se existem problemas antecipadamente, como forma preventiva?

Rui Miguelote: Nos cuidados primários devem ser identificadas e valorizadas, em todos os contactos com utentes em idade reprodutiva, todos os sinais e sintomas que possam ser reveladores de patologias, como as que descrevi na questão anterior, que possam ser comprometedoras da fertilidade futura.

Por exemplo, numa mulher que recorre ao médico de família porque pretende fazer um contracetivo oral porque tem irregularidades menstruais, deve-lhe ser explicado que o contracetivo lhe irá resolver as irregularidades menstruais, mas que não lhe vai resolver a disfunção ovulatória que poderá estar por trás dessas irregularidades e que, por isso, quando pretender engravidar essa condição deverá merecer desde logo uma avaliação precoce.

Devem também ser sempre aproveitados estes contactos para os educar para os hábitos de vida que podem comprometer a sua fertilidade e, no caso das mulheres, das implicações do adiamento de uma gravidez.

Já a realização preventiva de “avaliações da fertilidade” num casal ou num utente que ainda não pretenda engravidar e que não tem nenhuma condição clínica que possa ser comprometedora da sua fertilidade não concordo que se realize.

Estas avaliações levantam várias questões éticas e podem ter repercussões emocionais importantes. Discordo por isso que sejam requisitados espermogramas ou doseamentos da Hormona Anti-Mulleriana com esta indicação.

Estas avaliações descontextualizadas de uma situação de infertilidade geram preocupações e toda uma espiral de avaliações desnecessárias que causam, na minha opinião, mais prejuízos que ganhos.

+Fertilidade: Nos cursos que têm sido desenvolvidos sob a sua coordenação, que dificuldades são manifestadas pelos profissionais de saúde, incluindo ginecologistas e urologistas, quando confrontados com potenciais casos de infertilidade?

Rui Miguelote: O processo de reprodução humana e o funcionamento dos sistemas reprodutores são muito complexos e, infelizmente, em alguns aspetos ainda não totalmente compreendidos.

Embora esteja a haver uma evolução enorme, resultado de muita investigação que se tem feito, ainda não temos resposta para todas as situações com que nos deparamos e isto é muito angustiante para quem trabalha nesta área.

Por outro lado, para quem não lida diariamente com esta área é difícil acompanhar a evolução do conhecimento que tem ocorrido e, sobretudo em relação ao estudo da mulher, a complexidade de todo o sistema endócrino que está envolvido torna muitas vezes difícil compreender e integrar adequadamente todas as variáveis que estão em jogo nas diferentes situações clínicas que surgem frequentemente.

No curso pretendemos, regressando à compreensão da fisiologia do ciclo menstrual e ovulatório e do processo de fecundação e implantação e exemplificando com casos clínicos, aumentar o conhecimento e, sobretudo, a compreensão lógica de todos estes processos e das situações patológicas que são mais frequentes estes colegas encontrarem.

+Fertilidade: Além destes cursos, seria benéfico os médicos das USF passarem a ter ações formativas nesta área, dado que são muitas vezes os primeiros profissionais de saúde a quem é pedida ajuda nestas questões?

Rui Miguelote: Os conhecimentos dos médicos de MGF nesta área têm aumentado bastante e é notória a melhoria na qualidade das suas prestações no estudo e na orientação destes casos, estando muitas vezes ao nível da dos colegas de Ginecologia que não se dedicam a esta área.

Todos os internos de MGF já têm um estágio obrigatório na área de ginecologia/obstetrícia e neste estágio participam, geralmente, nas consultas de estudo do casal infértil. Nos hospitais que têm Centros de PMA este estágio poderá ser mais completo que nos outros hospitais e poderia fazer sentido que os internos de MGF passassem um período curto nestes centros.

A frequência de cursos específicos desta área, como o que nós organizamos, são realmente uma oportunidade importante de formação. Tivemos ao longo das primeiras edições um número crescente de colegas de MGF a inscreverem-se no curso e isso motivou que, em 2019, realizássemos um curso dirigido especificamente para eles e que teve uma adesão muito boa.

+Fertilidade: Outra realidade que tem chegado à APFertilidade é o diagnóstico tardio de doenças que afetam as mulheres, como a endometriose. Os sintomas são relatados aos médicos, mas parece haver algum desconhecimento ou insensibilidade de que dores menstruais intensas ou a ausência do período, por exemplo, podem ser indicadoras de problemas de saúde mais graves. Que conselhos deixaria aos profissionais que recebem casos destes no consultório?

Rui Miguelote: A oligo-amenorreia (ausência de menstruação ou menstruações irregulares) numa mulher em idade fértil é sempre resultado de uma patologia e por isso merecedora de estudo.

Felizmente, na maioria dos casos, é resultado de uma alteração funcional e não de uma causa orgânica irreversível. O diagnóstico e a orientação diferencial dessas condições é impossível de ser explicada em poucas frases, mas gostava sobretudo de realçar o facto de que por trás de um ovário com morfologia poliquística não está sempre uma Síndrome do Ovário Poliquístico.

Em relação à endometriose, a sua identificação ou exclusão é muito importante na orientação de um casal infértil e, por isso, a colheita da história clínica, o exame ginecológico, nomeadamente na avaliação dos fundos de sacos vaginais e nos ligamentos uterosagrados, e uma ecografia cuidada com avaliação da mobilidade dos ovários e do útero sobre as estruturas adjacentes é muito importante, porque só encontramos aquilo que procurarmos e se não for feita uma exploração adequada pode-nos escapar.